Há sempre um ar de repartição mofada nos grandes absurdos. Um cheiro de carimbo molhado e café requentado nos linchamentos de toga. O caso Filipe Martins, se não fosse uma tragédia, renderia comédia de quinta — daquelas com ator global em fim de contrato imitando juiz de Supremo com voz de trovão e pose de semideus. Mas não é comédia. É Brasil.
A acusação? Ridiculamente solene: Filipe teria redigido uma minuta que previa a prisão de autoridades. Só isso. Tremeu a República. Suspenderam-se as orações. Reverberou o nome “Filipe Martins” em notas oficiais, discursos, colunas de indignados profissionais.
E o mais divertido — divertido se você for o tipo de pessoa que ri em velório — é que a tal minuta, a que supostamente teria sido escrita por Filipe, com suas dez páginas de considerandos, sua ousadia de prever prisões de autoridades, sua cara de golpe e seu cheiro de ficção de delegado de série ruim… não está nos autos.
Não está.
Não consta.
Não aparece.
E mais: o próprio ministro Alexandre de Moraes admitiu isso tacitamente, com a delicadeza de quem confessa sem dizer. Quando instado a mostrar onde raios estava a tal peça fundamental da acusação, apresentou um slide. Um. Um mísero slide. E o que havia nele?
Dois fundamentos, ambos frágeis como papel molhado:
Os registros de entrada no Palácio da Alvorada — que, convenhamos, poderiam lançar suspeita sobre qualquer um, do copeiro ao governante.
Um depoimento hesitante do general Freire Gomes, que disse que Filipe possivelmente estava lá e possivelmente leu alguma coisa.
Possivelmente.
Com base nisso, tornaram-no réu.
Com base nisso, prenderam-no.
Com base nisso, tentam sepultar-lhe a reputação e a liberdade.
Não há minuto da tal minuta.
Não há página, não há rodapé, não há anexo.
Há apenas o desejo — doentio, impaciente, impune — de condenar.
A defesa de Filipe, até então chefiada pelo dr. Sebastião, ousou o que parece quase insolente nesses tempos de processos-espetáculo: pediu questão de ordem. Milagre: foi concedida. Já seria manchete. E Sebastião perguntou o óbvio:
— Onde está o documento?
E foi aí que se fez história — mas não como queríamos. Moraes apresentou páginas da minuta de Mauro Cid. Depois, sua assistente, num malabarismo de cliques e confusões, mostrou trechos da minuta de Anderson Torres.
Nenhuma delas previa prisão de autoridades. Nenhuma sustentava a narrativa da tentativa de golpe. Nenhuma era a suposta minuta atribuída a Filipe Martins. Nenhuma justificava denúncia.
Era o momento da virada. Bastava ao dr. Sebastião ter dito, com toda a elegância cortante de quem se recusa a participar da farsa:
Data máxima venia, mas Sua Excelência não esclareceu o fato. Peço objetivamente: onde está, nos autos, o documento que prevê a prisão de autoridades? Se ele não existe, então não há materialidade na denúncia contra Filipe Martins.
E podia ter completado, para deixar gravado em vídeo, em ata, em manchete:
O slide de Vossa Excelência traz apenas o depoimento de dúvida do general e os registros do Alvorada — duas peças que, isoladas ou em conjunto, não acusam ninguém. Lançam sombra. É diferente.
Mas não disse.
Ficou no quase.
E o quase, no Brasil, costuma virar eternidade.
Porque o ministro não tinha saída. Nenhuma.
Se mentisse, seria bom para Filipe.
Se se exaltasse, seria bom.
Se dissesse que a minuta vinha de Cid ou Torres, ótimo.
Se confessasse o blefe, melhor ainda.
Não havia cenário ruim. Era o xeque. Talvez o xeque-mate.
E ainda que a denúncia venha a ser rejeitada — e virá, porque o processo é uma pilha de papel mantida no grito —, esse episódio já provou tudo o que importa:
Filipe Martins está sendo perseguido por uma viagem que nunca fez.
E está sendo julgado por uma minuta que não existe.
Isso bastaria para derrubar qualquer processo num país onde o Direito ainda não tivesse sido substituído pela vontade dos iluminados de plantão. Mas aqui — onde o arbítrio se disfarça de jurisprudência e a dúvida virou suspeita penal — não basta.
Chamavam isso de Justiça.
Agora é teatro.
Teatro ruim.
Desses sem texto, sem enredo, sem vergonha.
Os papéis estão claros. Já temos o réu. Temos os inquisidores. Temos a turba. Só falta o Zola. Falta alguém que diga, com o peito aberto e a caneta afiada1:
Eu acuso.
Mas aqui, como se sabe, quem acusa o acusador acaba no banco de réus. Ou no rodapé da próxima pauta.
Escrevi este texto no dia 22 de abril e o deixei guardado. Só depois tomei conhecimento do artigo de Paulo Briguet na Gazeta do Povo, que expressa o mesmo insight: “Eu acuso: o absurdo julgamento de Filipe Martins”. Foi como num lance bem ensaiado: lancei na área e ele marcou o gol. Só pareceu — não houve troca de passes. Não nos comunicamos.
Meu querido amigo e admirado Professor Rafael Nogueira. Eu também escrevi dois artigos no meu blog sobre o ponto de vista jurídico do assunto. Mas depois de ler este texto aqui e o do Paulo Briguet, me obrigo a escrever um novo artigo, sobre como os Reis estão nus, diante dos advogados de Filipe que desmontaram a "pilha" de papéis dessa pantomima que virou "processo" "du gorpi". Como advogado, fiquei feliz de ler suas considerações e perceber que existe uma realidade bem palpável do Direito no Brasil. Obrigado por me ensinar a Realidade, que todos deveriam ver e muitos não tem a coragem de enxergar, ou não podem, porque viraram cegos psicológicos. Abração!
É, literalmente, kafkiano.